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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Ferreiro do Bosque Maior - JRR Tolkien

Capa do livro Ferreiro do Bosque Maior - JRR Tolkien

Que delícia reler Tolkien. A última vez havia sido em Sobre Histórias de Fadas, aliás um livro a que preciso retornar. Minha lembrança dele é maravilhosa.

E por que ler Tolkien é tão gostoso? Porque nele vemos um cuidado incomum com os detalhes, a descrição dos locais e dos indivíduos. Todo esse cuidado só colabora para nossa imaginação fluir pra looonge, longe.

Mas retornando a este conto, primeiro quero comentar da primorosa edição, um livreto, agradável de segurar e com uma capa digna de outras edições do Tolkien, dá vontade de ler. Ainda bem com uma fita marcadora de página, gente... que cuidado houve nessa edição. Obrigado Harper Collins Brasil, quero ir em busca de outros livros editados por vocês.

Nesta história parece que mais uma vez temos alguém saindo para uma aventura e deixando alguns para trás sem saber o que fazer. Dessa vez é o Mestre-Cuca que se vai sem deixar oficialmente um substituto, apesar de ele ter um aprendiz-forasteiro, Alf, que fora trazido em uma de suas férias.

Mas como Alf não era do Grande Bosque, a população nem o considerou quando do abandono do Mestre-Cuca, e quem foi nomeado Novo Mestre-Cuca foi Carvalheiro, o melhor cozinheiro meia-boca.

É delicioso como Tolkien conta suas histórias como se o leitor já tivesse uma bagagem preestabelecida para acompanhá-la. Aqui o mundo mágico de Feéria já está posto e parece que já sabemos coisas desse universo, mesmo nunca tendo ouvido falar antes.

Mas a história não é sobre Alf, não completamente. A história é sobre como uma criança ganha o direito de viajar por Feéria, descobrir seus segredos e perigos.

Vale ressaltar que as histórias infantis de Tolkien costumam ter um ar de fábula, apresentando, de alguma forma, um ensinamento, mas sem um ar professoral, de algo superior. Não sei se isso realmente é real ou uma lembrança falsa minha de outras obras dele que li.

E melhor ainda, nesses contos de fadas de Tolkien as fadas e seus domínios são mágicos e encantados, mas não são encantadores no sentido infantil. Eles nos surpreendem e nos atraem, mas em algum momento nos assustam. Os serem poderosos e mágicos só se mostram lindos, poderosos e acertadores quando confrontados.

Depois de ler Sobre Histórias de Fadas entendemos de onde vem essa visão de fantasia de Tolkien.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Sem Tempo a Perder - Ursula K. Le Guin

Capa do Livro Sem Tempo a Perder - Ursula K. Le Guin

Conheci Le Guin num vídeo da Rita Von Ruth, se não me engano. Naquela vez ela recomendava a leitura de Aqueles que abandonam Omelas, fiquei maravilhado com o texto e marquei para ler mais de Le Guin, infelizmente nunca o fiz, até hoje.

Mas não a reencontrei em um de seus livros ficcionais, mas retorno no seu livro mais pessoal, um compilado de textos que escreveu em seu blog.

Começo pelo fim(?) e vou primeiro conhecer a autora de forma mais íntima para depois, com certeza, adentrar em todos os seus universos.

Que alegria, mas não surpreso, em perceber em seu primeiro texto como Le Guin é uma pessoa diferente, com um senso crítico apurado da sociedade e com a sensibilidade de perceber e escrever que estamosnum momento que politicamente caminha para situações perversas (os textos variam entre 2010 e 2013), mal sabia ela que só pioraria, ou sabia?

Que delícia que é ler seus textos sobre a adoção de Pard seu último gato(?) e toda a descrição da relação dela e ele. A leveza e o carinho são palpáveis nas palavras.

Interessante ler suas questões, dúvidas e certezas(?), sobre a escrita, a forma de escrever e como ela percebe a ficção ou a não-ficção. Acompanhar esse raciocínio de uma escritora de alto Garbo é um deleite. Mais agradável ainda é fazê-lo num texto leve e descompromissado, sem a busca de torná-lo algo erudito ou superior.

Essa coletânea de textos se torna uma ode a vida vivida, ao enaltecimento do envelhecer. Mas de uma forma realistas, da análise de quem já viveu e passou por todas as situações possíveis que uma pessoa passe pela vida.

Dizer que minha velhice não existe é dizer para mim que eu não existo. Apague minha idade e você apaga minha vida - a mim.

Ursula K. Le Guin

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

O Dia Escuro - Coletânea


Logo de início a Fabiane, uma das organizadoras do livro e quem escreve a apresentação, cita:

Como que uma menina que gostava tanto [...] de inventar mundos bonitos e solares, ao mesmo tempo não resistia a histórias assustadoras, repletas de crimes, cemitérios e fantasmas?

O Dia Escuro, Coletânea de Contos

Achei curioso esse questionamento, porque há muito tempo acredito que não somos criaturas voltadas totalmente a uma forma de ser. Temos nossas dualidades, não tem como sermos apenas luz ou sombra.

O que as mulheres contemporâneas pensam quando pensam em terror?

O Dia Escuro, Coletânea de Contos

Essa premissa me interessou ainda mais e me fez imaginar: O que virá a seguir nessa coletânea de textos?

Depois de ler alguns contos rapidamente retomei minha memória a outro livro de contos, o Ficções Amazônicas, esse sobre contos amazônicos, com temática de fantasia, mas sem um ar de folclore ou mitológico.

Assim como nas Ficções - em que o objetivo é apresentar histórias que tenham um contato com o dito folclore, mas sem esquecer do dia a dia que pode ser como qualquer outro no Brasil, sem esse ar apenas místico. - este conjunto de textos quebra a expectativa de que terror tem que ser algo completamente assustador, com monstros, sangues e sustos. Não, o terror está também no delicado, no detalhe, e isso é extremamente enriquecedor.

Como no encontro inesperado de um dedo nas areias, "como ele apareceu por lá? De quem seria?".

Ou no estranho encontro de uma garota com sua amiguinha que ninguém mais se lembra de ter existido nos arredores, mas que jura conhecer sua irmã falecida há alguns anos. E aquela dúvida, será que realmente a garota via o demônio?

Ou ainda naquele jantar meramente formal, para puxar o saco do chefe, mas onde tudo que é oferecido você não gosta, ou não te agrada comer, mas como está lá por algo maior se vê na obrigação de fingir deliciar-se.

A leitura desses contos me traz a lembrança histórias de horror como Sinfonia da Necrópole ou Cidade, Campo (também escritas por uma mulher), filmes em que o horror não está na imagem que nos aterroriza, mas na suavidade em apresentar o místico (não é essa a palavra que procuro)` e no desconhecido que se apresenta no dia-a-dia, na rotina, como natural. Ou até mesmo O Pesadelo de Célia, história que o horror se encontra mais pela situação real e os personagens nela envolvidos do que pelo terror de uma criatura ou criação que estão ali para nos aterrorizar.

Será que é possível escrever um conto de terror quando a realidade parece um conto de terror?

Neon, Carola Saavedra (O Dia Escuro, Coletânea de Contos)

terça-feira, 15 de julho de 2025

Walden - H. D. Thoreau

Capa do Livro Walden de H. D. Thoreau. Uma imagem bucólica de uma casa toda em madeira no meio da floresta.
Não me recordo de ter abandonado um livro antes. Eu não sou um grande leitor e fico demorando muito para escolher o que vou ler. Quando decido é porque eu queria muito ler e mesmo que seja ruim eu termino porque eu tinha interesse.

Com Walden não foi bem assim, o livro apareceu aqui em casa depois de um dos garimpos de livros usados que faço com minha companheira - e já nos desapegamos deste. Primeiro li o verso, a contracapa e comentei sobre ele num fórum, o Órbita do Manual do Usuário, onde me falaram um pouco sobre o que seria. Resolvi ler por achar que valeria o conhecimento sobre o assunto, mas...

Desisti de ler Walden. Existe no texto uma pegada extremamente elitista e que me soa hipócrita. Trata-se de uma pessoa de grandes posses, para ficar num vocabulário mais próximo da época em que foi escrito, falando sobre a necessidade de termos menos coisas em casa, reclamando que não deveríamos julgar as pessoas pelo que elas tem, mas pelo que fazem. Isso começa a me soar como o que hoje seria um papo de coach. Alguém que tenta se justificar sobre seus privilégios.

Há ainda um papo de minimalismo, relatando como se os Árabes tivessem casas com mobílias mais simples, mas de uma forma pejorativa, indicando surpresa. E mesmo assim, se pesquisarmos, veremos que é o contrário.

Essa necessidade de demonstrar que a sociedade, do jeito que se encontra atualmente, nos molda de forma a buscar uma aceitação, hoje parece algo quase anedótico.

É deveras intrigante que constantemente seja usado o termo selvagem para se dirigir aos indígenas que vivem ou viveram nos EUA, entretanto, com frequência fica claro que quem está vivendo de maneira no mínimo precária é o dito civilizado sendo consumido pelo sistema capitalista - apesar de até agora o sistema não ter sido nomeado de vilão.

Toda a análise social feita com relação ao uso/fabricação de nossas vestimentas, depois a análise sobre como fica a relação do trabalho e a possibilidade de termos nossa casa própria se mostra muitas vezes, na verdade sempre, muito rasa, pois até o momento não considera que o capitalismo oprime o trabalhador e favorece apenas aquele que é dono do capital.

Apesar da premissa ser a necessidade de se consumir menos, de propor que todos tenham uma moradia e que o essencial seja obtido antes de correr os atrás de supérfluos, o processo é completamente equivocado ao jogar sempre no indivíduo a necessidade e a obrigação de resolver sozinho o seu problema, sem questionar como O capitalismo está (e já estava) construído para não permitir que isso ocorra.

terça-feira, 22 de abril de 2025

O Manifesto do Partido Comunista - Karl Marx e Friedrich Engels

Capa do Livro O Manifesto Comnista, edição pocket da L&PM
Quando eu comecei a escrever sobre esse pequeno livro, que na verdade é apenas um panfleto de propaganda, desencadeei a colocar citações e comentários de como algo tão antigo se mostra tão atual.

E acho que na verdade é isso que tenho a dizer dO Manifesto. Ele é tão atual e necessário quanto o foi em 1848.

Tudo que está lá encontramos em paralelo à situação que enfrentamos hoje, de uma forma ou de outra.

Toda bobagem de empreendedorismo, a tomada dos direitos trabalhistas, até mesmo os milionários de esquerda que nos mostram os absurdos do Capitalismo, mas não propõem uma revolução, mas uma mudança silenciosa e por dentro do sistema.

SPOILER: assim não acontecerá.

A classe trabalhadora precisa entender a sua situação enquanto classe social precarizada, colocada à margem. Apenas a união como classe nos trará a real liberdade que tanto almejamos.

No final é isso, precisamos de mais Manifestos e menos coaches e afins.

Proletários de todos os países, uni-vos!

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Contato - Carl Sagan

Capa do Livro Contato de Carl Sagan, capa dividida em 3 partes horizontalmente. no topo o nome do autor, no meio o título do livro e no final o desenho de um radiotelescópio
Não sei porque demorei tanto para ler esse livro, ele sempre ficou na minha mente como uma obrigação a ser realizada, principalmente por gostar tanto do filme.

Aliás, por gostar tanto do filme, sabendo que ele realmente é muito bom, e mesmo tendo a máxima de que o livro é  sempre melhor que o filme, isso sempre me fez temer  achar o livro pior.

Spoiler: Não aconteceu.

Vale já outro aviso de que não farei comparações com o filme por aqui, se o fizer deixo para um post pessoal lá no meu blog.

Vamos ao livro. 

A história está centrada em Ellie, uma radioastrônoma que tem por objetivo de vida e carreira encontrar outras formas de vida inteligente nesse universo enorme, porque, como diria o próprio Sagan:

O universo é um lugar muito grande. Se somos apenas nós, parece um terrível desperdício de espaço.

É importante ressaltar que Sagan não esquece de considerar que Ellie é uma mulher de poder num universo dominado por homens e que mesmo sendo uma mulher brilhante na sua carreira, ela não deixa de ser uma mulher e tem que enfrentar diariamente todo o machismo e a misoginia presentes na sociedade. Em todo o momento vemos Ellie nessa luta constante e no seu esforço de continuar mostrando seu valor.

Também é interessante comentar que o livro foi escrito durante a Guerra Fria e que mesmo Sagan sendo um estadunidense ele se esforça para não transformar a visão de outras nacionalidades, inclusive a soviética, num estereótipo raso e pejorativo. 

Ellie tem todo esse fascínio pelo universo desde criança e outra característica muito presente no livro é a grande ligação que ela tem com seu pai. Na verdade, na memória de seu pai que faleceu no final da sua infância o que transformou a relação com sua mãe e seu padrasto numa relação delicada de afastamento e negação.

Participando como diretora do conjunto de radiostelescópios do VLA (Very Large Array) no Novo México e do projeto Argus, Ellie finalmente ouve uma mensagem vinda do espaço que certamente confirma a existência de seres vivos e pensantes nas profundezas do universo, em Vega.

A chegada da Mensagem traz junto toda uma questão geopolítica de divulgação de que ouve contato com seres extraterrestres e da necessidade de compartilhamento e coparticipação de todo o planeta para que a informação não seja perdida no momento em que os EUA não estejam no raio de recebimento das ondas de rádio.

Como Sagan foi antes de tudo um grande cientista e divulgador, a história tem o tempo todo grandes passagens com conceitos e explicações com embasamento cientificamente mais acurado que nos fazem ter alguma dificuldade em acompanhar os raciocínios dos personagens. Não é nada extremamente complicado, mas a gente percebe o cuidado em transmitir as informações de forma mais realista possível.

As questões políticas, principalmente com a União Soviética, estão sempre presentes na história, além de todo o arcabouço de preocupações em compartilhar informações sensíveis com outras nações que possam transformar qualquer outro país numa potência (militar) que possa bater de frente com os EUA. Mas, ao mesmo tempo, você lê no texto de Sagan seu positivismo em relação à possibilidade da sociedade ter condições de trabalhar unida em torno de algum bem maior. No final, Sagan acredita no serumano.

Com a chegada da Mensagem vem a descoberta de que na realidade estamos recebendo um grande manual de construção de uma Máquina e aqui partimos para mais um jogo político de quem vai construir, onde e quais indústrias terão acesso a toda uma tecnologia não-terráquea. E novamente vemos que Sagan tem uma esperança na humanidade quando essas questões são resolvidas de forma pacífica e que garantam a montagem da Máquina sem entrarmos numa guerra mundial.

A coisa toda anda com algumas intrigas políticas, problemas e dificuldades construtivas e mais um impasse político: quem serão as 5 pessoas que viajarão até Vega? (sim, 5 pessoas terão essa honra).

Tudo decidido, a Máquina construída e claro que Ellie está entre as escolhidas.

Vamos para Vega!

A viagem acontece, Ellie e seus companheiros conhecem os veganos e retornam à Terra. E é aí que temos o problema.

Acontece que aqui na Terra se passaram 20 minutos, enquanto para nossos viajantes foram quase 2 dias. E mais, nada que eles fizeram para filmar a viagem ou que comprove a ida deles voltou. Enquanto isso, na Terra,  além de se passarem apenas 20 minutos, a Máquina não saiu do lugar. Foi como se ela tivesse ligado e morrido na partida. Nossos cosmonautas foram ao centro da galáxia, visitaram os veganos, conversaram, tiveram uma experiência quase transcendental e nada foi registrado ou há como se provar.

E aí que entra uma outra boa questão do livro e que permeia boa parte das obras de Sagan: a relação entre ciência e fé.

Ellie é uma pessoa ateia, não por negar a existência dos deuses, mas por não existirem evidências da existência deles. Logo, é mais lógico acreditar que eles não existem.

E de repente, ela se vê na mesma situação, não só ela, mas seus amigos cientistas também: ter de explicar uma experiência magnífica e fora da realidade que entendemos, mas não temos evidências, e querer que acreditem.

E como lidar com isso? O que fazer? Bom, não posso contar, porque isso é o que traz ao livro sua maravilha, participar desse processo com nossa querida Ellie, lidar com toda essa frustração e ir em busca de evidências.

Grande parte da obra de Sagan tem sempre esse dilema, Sagan sempre agiu com muito respeito com relação à fé, sem a colocar em choque.

Sagan sempre defendeu que a ciência pode nos tornar pessoas que se maravilham com o universo, mas por outros motivos, por entender, ou por buscar as respostas de porquê as coisas são assim. E só isso já vale a leitura.

Grande abraço a todos.

Boa leitura.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

A tetralogia napolitana de Elena Ferrante

Já algum tempo eu estava buscando alguma leitura para me prender, daqueles livros que dão vontade de chegar em casa logo para poder voltar a ler, de esquecer que tem que ir dormir cedo para trabalhar no dia seguinte, de torcer para sábado e domingo chegarem para passar o dia todo lendo. E essa tetralogia me entregou justamente isso. De Fevereiro até Junho, só o que eu fiz foi ler Elena Ferrante. Fiquei tão fissurada, que fui correndo assistir a série da HBO assim que terminei a leitura, para continuar com o gostinho da trama na boca.

A tetralogia napolitana de Ferrante já é considerada um clássico da literatura contemporânea por alguns entendidos da área e hoje eu entendo porquê. Nesses quatro livros, acompanhamos o nascimento, desenvolvimento e morte da amizade de duas personagens: Elena (Lenu - a narradora da história) e Rafaela (Lina/Lila), que parecem tão distintas em personalidade, mas que, vez ou outra, se pegam vivendo os mesmos impasses e as mesmas contradições.

(Pode conter spoilers)

Em A Amiga Genial, Ferrante estabelece as raízes dessa amizade, constrói o cenário e as personalidades das duas garotinhas, que logo vemos se transformando em duas adolescentes. "Eu sou a má, você é a boa", disse Lila, já fazendo essa primeira distinção. Morando no mesmo bairro, em prédios vizinhos, e frequentando a mesma escola, Lenu e Lila pareciam ter destinos similares: ambas inteligentes, sagazes e destemidas. Logo estabelece-se uma relação de quase simbiose e competição entre as duas. Contudo, no final da quarta série, as duas amigas são obrigadas a se separar, pois, enquanto Lenu continua seus estudos no Fundamental II, Lila é impedida de estudar por sua família, que precisa de ajuda no comércio. Neste momento ocorre uma cisão irreparável entre as duas. Lenu iria viver tudo aquilo que Lila tinha planejado para a sua própria vida, mas não teve oportunidade de seguir. Separam-se em "o que Lenu foi e Lila poderia ter sido" e "o que Lila foi e Lenu pode se tornar se não prestar atenção aos seus passos", quase como se uma mesma pessoa visse a separação de sua linha do tempo em dois multiversos onde tomou decisões (ou decisões foram tomadas por outros sobre si) que mudaram para sempre sua vida. 

Em História do Novo Sobrenome, o livro se desenrola em volta das relações amorosas e conjugais de Lenu e Lila. Enquanto Elena tenta conciliar essas relações com seus estudos, Lila tenta conciliá-las com as expectativas de sua família e de todo o bairro. Este segundo livro foi o mais babadeiro, cheio de acontecimentos movidos pela juventude dos personagens, afoitos em viver, perseguir seus sonhos e errar o tempo todo. Justamente por isso, essa unidade carrega uma tensão difícil de explicar. Aquela da classe trabalhadora, das pessoas que vieram do nada, de que qualquer passo dado em falso poderia significar a completa perdição das personagens. Elas não tem direito a uma segunda chance. 

Aqui, você começa a conhecer tão bem as personagens, seus medos e sonhos, que, durante todos os outros livros, por mais inesperado que seja um acontecimento, uma tomada de decisão, você percebe o embasamento daquela escolha. A forma de agir de Lenu e Lila nunca é aleatória. Ao final, você já está soltando mentalmente frases como "típico da Lila agir assim". 

Em História de quem foge e de quem fica, percebemos um crescendo na tensão política do momento, com ascensão do fascismo na Itália e perseguição aos comunistas. Também observamos o início de movimentos e discussões feministas até hoje contemporâneas, sobre a infiltração de todas as filosofias acadêmicas de igualdade nas classes operárias, menos estudadas, extremamente exploradas e subjugadas por outras classes diariamente, ou até mesmo subjugada entre seus próprios membros. 

Essas reflexões político-ideológicas permeiam todos os campos da vida de Lenu, agora uma escritora conhecida que não mora mais no bairro de origem, que precisa descobrir como se posicionar, como ajudar, como contar a história do seu bairro sem ser perseguida, sem perder leitores, conciliando o papel de feminista com o papel de esposa, mãe e "menina do bairro que deu certo". 

Para mim, foi o livro mais bonito, o que mais me tocou, pois a personagem passou pela idade que tenho hoje. Em muitas páginas, me peguei fazendo as mesmas indagações de Lenu, me indignando com as mesmas coisas, refletindo sobre qual aspecto me resignar ou não, sobre o que se pode mudar do nosso cotidiano e o que não se pode mudar, me olhando no espelho buscando entender quem ou o que eu tinha me tornado.

Por fim, em A menina perdida,  Lenu volta ao bairro de origem e volta a dividir o cotidiano e jornadas de vida com Lila. A reaproximação das duas é algo positivo ou negativo? Precisa ser apenas uma dessas coisas? Já mais amadurecidas, as nossas protagonistas simplesmente resolvem serem quem são, despir as máscaras, viver as suas verdades e seus sonhos de acordo com a possibilidade de suas realidades. De fundo, sempre há o questionamento se existe mais para se viver além do bairro e, se existe, para que viver essas coisas? Será que vale a pena? É um livro que deveria trazer respostas, mas não traz. Só traz mais perguntas, mais indagações, assim como é a vida. Sem resoluções mesmo.

Duas coisas que eu me apaixonei nessa tetralogia foram: (1) Durante a narrativa dos quatro livros, conseguimos distinguir claramente o ponto de vista enviesado de quem conta a história. Tendo conhecimento da história dos personagens, você se torna tão íntima de suas personalidades que já consegue separar o que é fato do que é opinião. (2) Você nunca sabe a quem se refere o título dos livros. Seria Lila ou Lenu a Amiga Genial? Ou seriam ambas? A história do novo sobrenome, será o de Lila ou de Lenu? Quem fugiu e quem ficou? E quem voltou? Quem é a menina perdida? Esse título é literal ou subjetivo? O mais curioso é que, mesmo depois de ler os quatro livros, ainda não há uma certeza. Pois os títulos dos livros não são sobre uma ou outra, são sobre as duas, em momentos distintos, ao mesmo tempo, mas sempre as duas, vivendo vidas diferentes, mas que se cruzam em tantos pontos.

Eu vi gente no Twitter falando que o livro é chato, pois nada acontece. Fiquei indignada, pois para mim é justamente o contrário: uma vida inteira acontece. Na verdade, duas vidas inteiras. E nós temos o privilégio de acompanhar a evolução dessas duas mulheres passo a passo, suas decisões, seus arrependimentos, seus sentimentos contraditórios. É de uma beleza e reflexão incríveis.